Por Canal Ciências Criminais
Por Daniel Lima
Na coluna dessa semana, devido à época carnavalesca, resolvemos trabalhar em cima de um tema relevante, que gera divergências na doutrina brasileira. Afinal de contas, o beijo roubado é suficiente ou não para configurar o tipo penal previsto no artigo 213 do Código Penal?
A princípio, cumpre salientar que o crime de estupro, após a alteração dada pela lei 12.015/2009 ao artigo 213 do Código Penal, passou a se configurar com a prática da conjunção carnal, bem como com a prática de todo e qualquer ato de natureza libidinosa.
Ocorreu, portanto, o que se denomina de princípio da continuidade normativa típica, uma vez que um mesmo tipo penal passou a incriminar, com a mesma pena, condutas alternativas.
Assim, independentemente da quantidade de condutas praticadas, desde que praticadas em um mesmo contexto fático, o agente só responderá por um único crime. Digamos, por exemplo, que em um mesmo contexto o agente pratique ato libidinoso e conjunção carnal.
Nesse caso, o agente delituoso, apesar de ter realizado condutas distintas, responderá apenas por um único crime de estupro, e não mais pelo atentado violento ao pudor (em virtude do atos libidinosos) e estupro (em virtude da conjunção carnal) em concurso de crimes.
O grande problema está em conseguir definir precisamente quais condutas podem ser consideras libidinosas. A abstração e a falta de um elenco taxativo de condutas tidas por libidinosas dá margem para o subjetivismos e interpretações anacrônicas, o que gera insegurança jurídica.
A doutrina entende que ato libidinoso é todo aquele praticado no intuito de satisfação da lascívia. O sexo oral ou anal, a masturbação e o toque em partes íntimas são, claramente, condutas de alto teor sexual, praticadas no escopo de satisfação da lascívia.
Assim, quando praticadas sem o consentimento da vítima, são consideradas atos libidinosos, e, por consequência, configuram o delito de estupro.
É válido ressaltar ainda que, o que antigamente era considerado libidinoso, hoje já é não mais. Os tempos e conceitos mudaram, o intérprete deve se pautar, portanto, no ambiente sócio-cultural em que vive, pois só assim conseguirá definir o que é ou não considerado libidinoso.
Nessa esteira, o beijo roubado pode ser enquadrado como crime de estupro à luz do artigo 213 do Código Penal? Quais são os requisitos que devem estar presentes para que haja o enquadramento legal?
Para resolvermos a questão, partiremos da análise do Recurso Especial de nº 1.611.910 – MT, decidido pela sexta turma do STJ, que reformou a decisão do Tribuna do Mato Grosso, condenando o réu por entender que o beijo roubado, no caso concreto, configurou o crime de estupro. De acordo com o exposto nos autos:
“o acusado agarrou a vítima pelas costas, imobilizou-a, tapou a sua boca e jogou-a no chão, ocasião em que tirou uma blusa de lã que ela trajava e deu-lhe um beijo, conseguindo inserir a língua na sua boca.”
O Tribunal entendeu que o beijo não configurou o crime de estupro, pois, apesar de ter havido violência, por parte do acusado, através da utilização da força física, entendeu-se que a breve duração do beijo, mais a negativa da vítima, fizeram com que o enquadramento da conduta como ato libidinoso se tornasse impossível.
Ademais, ainda de acordo com o entendimento do Tribunal exposto nos autos:
“é indiscutível a existência de um contato rápido, ocorrido em fragmentos de segundos que não permite a ideia de o apelante ter feito contato com a língua da vítima. Para que isso acontecesse seria necessária a sua aquiescência e não a resistência que ela revela, pois, a cena nesse aspecto não pode ser presumida. E assim o beijo foi rápido e roubado que não caracteriza ato libidinoso.”
Por sua vez, o STJ entendeu de modo diverso, no sentido de que a violência física empregada é elemento suficiente para caracterizar o dolo do agente de praticar ato libidinoso.
Ademais, a brevidade do beijo e a resistência oferecida pela vítima nada tem a ver com a intenção deliberada do agente de praticar ato libidinoso, não tendo o condão, portanto, de descaracterizar o estupro.
O Ministro Schietti ressaltou em seu voto que desconsiderar a vontade e o consentimento da mulher é apoiar a cultura patriarcal e sexista, que nega a liberdade sexual da mulher e aceita como natural a violência sexual praticada contra as mulheres.
Ante o exposto, concordamos com o entendimento do STJ, no sentido de que, no caso concreto, a ocorrência do ato libidinoso é inequívoca, tendo em vista que o emprego da força para a obtenção do beijo já é elemento suficiente para que a violência, e, por consequência, o estupro, seja caracterizado.
A brevidade do beijo e a negativa da vítima não descaracterizam o dolo do agente, sendo desnecessária, portanto, a satisfação do apetite sexual do agente para que se possa falar em crime de estupro.
Ademais, pensamos ser desnecessária a diferenciação doutrinária que se faz entre beijo roubado e forçado.
A doutrina entende que beijo roubado é somente aquele obtido obtido em um momento de distração da vítima; ou seja, é aquele em que a pessoa beijada é pega de surpresa. Já o beijo forçado, por sua vez, é aquele em que a vítima se opõe a conduta do agente, que utiliza de força física para conseguir o beijo.
Entendemos que tanto no beijo roubado quanto no beijo forçado há emprego de violência. A diferença é que no beijo roubado, em razão do elemento surpresa, a violência incide durante e após o beijo, já no beijo forçado a violência ocorre de forma prévia ao beijo.
Ao nosso ver, o mais importante é, portanto, que se analise o caso concreto, de forma isolada, pois havendo violência, e sendo um beijo lascivo, o crime em questão é o de estupro.
Todavia, se for um beijo mais tímido, apesar do dissentimento da vítima, podemos enquadrar o fato como contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, tendo em vista que o enquadramento em estupro seria desproporcional em relação à lesão provocada no bem jurídico tutelado.
Por fim, entendemos que o beijo lascivo, independentemente do momento na qual a violência empregada, é inequivocamente um ato libidinoso e configura crime de estupro. Deve-se ter em mente que o emprego da violência é elemento intrínseco no beijo realizado sem a concordância da vítima.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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