Criminalistas analisam principais causas de erros judiciais e suas consequências

12 de Setembro de 2018

Por Sérgio Rodas

As principais causas de erros judiciais são falsas acusações, reconhecimento errado do autor do crime, perícias imprecisas, abusos de agentes estatais e confissões forçadas, muitas vezes obtidas mediante tortura. É o que afirmaram as criminalistas Maíra Fernandes e Dora Cavalcanti durante o 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido em São Paulo pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), no último dia 29.

Maíra, que foi presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, disse que nunca viu um reconhecimento de autor ser feito de acordo com os requisitos do artigo 226 do Código de Processo Penal.

A regra do inciso II é especialmente desrespeitada, apontou. O dispositivo estabelece que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

“Em muitos casos que chegavam a mim no Conselho Penitenciário, o reconhecimento era feito da seguinte forma: pegavam o sujeito preso — com cara de preso, sem banho, abatido — e colocavam do lado dele funcionários do cartório, todos arrumados, com roupas sociais. É claro que a vítima sempre reconhecia o sujeito [como autor do crime]”, contou a advogada.

Além disso, afirmou, diversas vezes policiais pressionam a vítima para dizer que um dos elencados é quem praticou o delito. E a definição de quem é suspeito ou não costuma seguir filtros racistas e classistas, destacou Maíra, mencionando o ocorrido com o ator Vinícius Romão de Souza.

Ao sair da loja onde trabalhava como vendedor, ele foi preso. A vítima tinha dito aos policiais que fora roubada por um homem negro, que vestia uma camiseta preta — tal como Souza. Na delegacia, ele ligou para seu pai, e este levou documentos que provavam que o filho era ator. Ao determinar sua libertação, o juiz apontou que Souza “não tem o perfil dos presos corriqueiros”. “O mesmo motivo que fez prender foi o que fez soltar”, observou a advogada.

Outro problema está no reconhecimento por foto. “Ninguém esclarece a vítima que, entre os retratos que lhe são apresentados, não necessariamente algum é de um autor de um crime”, declarou Dora Cavalcanti, diretora do Innocence Project Brasil. Só que a identificação indevida por uma foto acaba ficando na mente da pessoa, criando uma falsa memória. Assim, quando ela se depara pessoalmente com o suspeito, acaba quase automaticamente apontando-o como praticante do delito, ressaltou.

Para evitar isso, Dora defendeu que sejam criados protocolos para o reconhecimento de pessoas. Segundo ela, todas as etapas devem ser gravadas.

Confissões falsas

As confissões falsas são responsáveis por grande parte dos erros judiciais. Nos EUA, citou Dora Cavalcanti, muitos suspeitos preferem fazer um plea bargain (espécie de acordo de delação premiada) a se submeter a um julgamento e correr o risco de ser condenado a uma pena bem maior.

Já no Brasil, a ditadura militar terminou em 1985, mas seus resquícios ainda podem ser encontrados na atuação das polícias, apontou Maíra Fernandes. “A tortura ainda é um método de interrogatório”. Embora a Organização das Nações Unidas constantemente denuncie a prática no país, é muito difícil punir os policiais que a praticam, analisou a criminalista.

“Certa vez, no Conselho Penitenciário, 10 mães de presos me denunciaram torturas. Daí eu falei: ‘Vamos agora para a delegacia’. Mas elas disseram: ‘Não. A senhora está aqui hoje, mas não estará amanhã. Nossos filhos ainda têm muito tempo de prisão para cumprir e podem sofrer represálias’. Assim, nós denunciamos as agressões na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e tudo o que conseguimos foi tirar o diretor da prisão — e ele foi transferido para outra unidade, com menos trabalho”, criticou.

As duas advogadas também avaliaram que as perícias têm um valor probatório exagerado em ações penais. Como exemplo, Maíra contou o caso de um homem que foi condenado a 10 anos de prisão por vender mel com própolis. Ele foi enquadrado no crime do artigo 273, parágrafo 1º, do Código Penal — vender produto destinado a fins medicinais falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.

“Tinha um laudo do Ministério Público que dizia que mel com própolis era um medicamento, embora fitoterápico. E que estes, se usados sem prescrição, poderiam ser extremamente danosos à saúde. Por isso, ele foi condenado a 10 anos de prisão. Daí eu peguei na farmácia um mel com própolis e vi que ele tinha registro no Ministério da Agricultura — ou seja, era um alimento, não medicamento. Com isso, consegui absolvê-lo.”

Abuso de autoridade

As condutas abusivas de policiais, integrantes do MP e magistrados são outro fator que contribui para erros judiciais. Maíra Fernandes disse que, no Rio de Janeiro, a Súmula 70 do Tribunal de Justiça legitima condenações sem provas. O verbete diz que o fato de apenas policiais serem testemunhas “não desautoriza a condenação”.

Um estudo da Defensoria Pública fluminense mostrou que, em 53,79% das condenações por tráfico de drogas, a palavra dos policiais foi a única prova usada pelo juiz para fundamentar sua decisão. E em 71,14% eles foram as únicas testemunhas dos processos. E tanto o Núcleo de Estudos de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) quanto o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em sua tese de doutorado na mesma instituição, verificaram o percentual de 74% de autos de prisão em flagrante sem a palavra de testemunhas que não os policiais envolvidos.

Para demonstrar como a Súmula 70 é usada para produzir injustiças, Maíra narrou a história de um jovem que morava na entrada de uma favela do Rio. Ao chegar de seu trabalho, viu que a polícia iniciava uma operação no local. Ele então foi cozinhar seu jantar e, sem querer, derrubou as panelas. Os agentes de segurança ouviram o barulho e logo invadiram sua casa. Sob a alegação de que o sujeito estava alertando traficantes da ação policial, prenderam-no em flagrante. Com base apenas no relato dos policiais, o homem foi condenado por associação ao tráfico e cumpriu integralmente sua pena.

A conduta dos agentes estatais é motivada por um sistema punitivista, que acredita que a prisão é a solução para a criminalidade, opinou a advogada. Com essa mentalidade e pressionados pela imprensa, delegados têm que achar culpados; promotores, denunciar; e juízes, condenar, afirmou a criminalista.

Tarda e falha

Mesmo quando um erro judicial é descoberto, é difícil que o injustiçado obtenha indenização do Estado. Basta ver o caso de Heberson, citado por Maíra Fernandes. Ele foi preso preventivamente em 2003 sob acusação de ter estuprado uma menina.

A vítima descreveu o autor do crime como “de estatura média, magro, cabelos castanhos escuros, moreno escuro e com os dentes da frente salientes e faltando os caninos”. No entanto, Heberson é pardo e tem dentes alinhados. O laudo pericial concluiu que as características físicas dele são incompatíveis com as mencionadas pela garota.

Além disso, a vítima afirmou que o autor do delito já tinha estado em sua casa, procurando emprego para sua irmã. Nessa ocasião, teria falado com a “tia” Isabel. Porém, esta mulher garantiu que Heberson nunca foi à casa da menina pedir trabalho.

Em 2006, Heberson foi absolvido. Nos três anos que permaneceu preso, foi estuprado por 60 detentos e contraiu o vírus HIV e toxoplasmose. No começo de 2015, o estado do Amazonas negou pedido de indenização a ele. Nove meses depois, o Tribunal de Justiça do Amazonas reconheceu seu direito à reparação. Contudo, o estado recorreu, e o caso está no Supremo Tribunal Federal.

Enquanto isso, a saúde de Heberson vem se debilitando. “Tenho medo de que essa indenização só saia quando o Heberson já tiver morrido”, lamentou Maíra.

(Fonte: https://www.conjur.com.br/2018-set-06/criminalistas-analisam-principais-causas-erros-judiciais, data de acesso: 10/09/2018)

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