Júlia Casares Fuza
Com a evolução das técnicas de reprodução humana assistida em laboratório e as diversas pesquisas acerca deste tema, fizeram com que a discussão deixasse o campo apenas da Medicina para integrar também o do Direito. Muitos casais que não podem ter filhos pelo método convencional, seja por infertilidade, recomendação médica ou opção, e anseiam a isso, recorrem a reprodução in vitro. Essa alternativa traz inúmeras dúvidas e desafios ao legislador, ao magistrado, aos futuros pais envolvidos e aos médicos, e nesse ponto apresenta-se as formas mais comuns de reprodução assistida, bem como os conflitos éticos e de legislação a ela inerentes, como a remuneração da mulher que cedeu o útero.
Popularmente conhecida como barriga de aluguel, devido ao seu caráter remunerado em alguns países pioneiros, a reprodução humanamente assistida através de um útero de substituição, segundo o médico Arnaldo Schizzi Cambiaghi, consiste em uma “doação temporária de um útero para uma mulher que não possa engravidar”. São conhecidas várias técnicas de fecundação assistida, baseadas fundamentalmente na possibilidade de introduzir espermatozóides, óvulos ou embriões (óvulos já fecundados in vitro) no útero da futura mãe. As mais comuns são: fecundação homóloga e fecundação heteróloga.
Devido a crescente procura e ao avanço das técnicas de reprodução humana assistida, aumentou também a urgência de normas legais que a regulem no Ordenamento Jurídico brasileiro. Atualmente esses procedimentos são geridos somente pela resolução CFM Nº 2.013/2013. Publicada no D. O. U. De 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119.
Obrigatoriamente aplicada nos casos de reprodução humana medicamente assistida, tal resolução prevê que nos casos de gestação com útero de substituição ou “barriga de aluguel”, só será permitida onde exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética, bem como limitam a idade da candidata à gestação em 50 anos e obriga a produção do termo de consentimento informado em todos os casos.
As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética ou de seu parceiro, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. Deve-se ressaltar que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
É justamente no tocante a questão financeira entre as “mães” que reside a crítica e a dúvida a respeito de tal prática, uma vez que, segundo a visão da bioética, essa é imoral e ilícita, pois leva a “coisificação” do ser humano. “Coisificação” essa que reside no fato da placenta surgir durante a gravidez e adquirir o status de órgão porque essa atua de modo a possibilitar as trocas gasosas do feto, sua alimentação, e a eliminação de suas excretas. Dessa forma, quem
Cobra para carregar um feto alheio, está “vendendo” a sua placenta e cobrando “estadia” em seu útero.
Consta expressamente no atual Código Civilque os bens imateriais da pessoa humana, dentre eles integridade corporal – órgãos, são inalienáveis. Logo, não podem ser vendidos.
A própria UNESCO em 1997, criou os principais princípios quanto a dignidade humana e os direitos humanos, no qual há a proibição da comercialização de produtos do corpo humano.
A esse respeito, cita Oswaldo Fróes em seu livro “Direito Civil – Parte Geral”:
“São bens da personalidade, entre outros, a vida, o nome, as opções individuais, a psiquè e o físico. A personalidade começa desde a concepção, sob a condição do nascimento com vida, sendo impossível sua alienação.”
O conceito de filiação teve que acompanhar a evolução legislativa que ocorreu em nosso Direito. Antes tida apenas como a relação havida entre parentes consanguíneos em linha reta de primeiro grau, com o instituto da adoção, com novas possibilidades surgiram no campo da medicina, sobretudo, com o reconhecimento do afeto como causa da ligação entre duas pessoas na condição de pai e filho, esse conceito teve que ser ampliado.
Assim define Silvio Rodrigues:
“Filiação é a relação de parentesco consangüíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àqueles que a geraram, ou a receberam como se as tivessem gerado.”
No tocante ao afeto, afirma Luiz Edson Fachin que a verdadeira paternidade não se explica somente pela autoria genética e que “pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura.”
No caso da fecundação homóloga, isto é, quando a fecundação é feita com o óvulo e o espermatozóide do próprio casal, a paternidade é dada a ambos, uma vez que o material genético envolvido provém deste.
Sendo assim, não há necessidade de declaração da doadora do útero sobre os gametas, apenas sobre a doação temporária do útero.
Já no caso da fecundação heteróloga, ou seja, quando a fertilização é feita com o óvulo ou o espermatozóide de terceiros; sendo este do banco de sêmen ou de óvulos, a filiação é atribuída ao casal envolvido, sem necessidade de declaração pública da gestante solidária quanto a tal fato, sendo somente preciso sua declaração apenas de “mãe” solidária, ou seja, de mero reservatório do feto. Agora, se a mulher que irá gestar o bebê for também a doadora do gameta é absolutamente necessária sua declaração de doação do óvulo para que se possa atribuir a maternidade a “outra mãe” envolvida.
Deixando de lado a reflexão jurídico-legal, e partindo para o ramo sociológico do Direito, deve-se levar em conta que o fato de ser mãe ou não, pesa decisivamente no comportamento de muitas mulheres em relação a si próprias e aos seus companheiros, de modo a interferir no progresso destas pessoas e de suas relações.
Deste modo, o Direito e todo o ordenamento jurídico, responsáveis pela organização social devem zelar pelo bem individual e coletivo. Além disso, todos os seres possuem o direito de realizar suas vontades, desde que essas não prejudiquem o interesse da maioria.
Logo, por que não se legaliza a prática da barriga de aluguel, se a própria barriga solidária envolve o intercambio monetário entre as “mães envolvidas”, o que caracteriza um tipo de “venda” ou “locação” do útero e da placenta? Se atualmente, na concepção moderna do termo família compreende-se desde união heteroafetiva, homoafetiva, até a uniparental, por que não se pode ter um filho gerado por outra pessoa com seus próprios gametas ou de terceiros numa relação contratual de prestação de serviços? O que há de tão errado nessa relação? Por que uma pessoa não pode decidir sobre o seu próprio corpo? Essas são dúvidas freqüentes que precisam ser respondidas para uma sociedade que cresce cada vez mais diversificada e ligada pelo afeto, numa espécie de mundo globalizado e pós-moderno.
Julia Casares Fuza