Desacato

STF decide que desacato é crime recepcionado pela Constituição de 1988

Em sessão virtual, os ministros entenderam que o desprezo pela função pública deve ser coibido

• ANA POMPEU
• LUIZ ORLANDO CARNEIRO

BRASÍLIA

19/06/2020 20:36 Atualizado em 20/06/2020 às 19:34

O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou, nesta sexta-feira (19/6), que desacato é crime recepcionado pela Constituição Federal. Por 9 votos a 2, por meio da sessão virtual da Corte, o colegiado entendeu que, para se considerar cometido o delito, é preciso verificar o desprezo pela função pública. Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin e Rosa Weber.

O caso foi julgado na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 496, apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tendo por objeto o art. 331 do Código Penal. O dispositivo dispõe que “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” e determina detenção de seis meses a dois anos ou multa como pena. A OAB alegava que a tipificação de crime coloca os servidores públicos em condição de superioridade em relação aos outros cidadãos.

O relator, ministro Luís Roberto Barroso, aplicou o rito abreviado ao caso, fazendo com que ele tivesse o mérito julgado diretamente. Ele defendeu, inicialmente, a compatibilidade do tipo penal com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica.

“Não tendo havido, portanto, submissão das disposições do tratado internacional ao processo legislativo de adoção de emendas constitucionais, seu status é de norma supralegal”, disse, no voto. De acordo com ele, a competência, no âmbito internacional, para a interpretação e aplicação da Convenção é atribuída à Corte Interamericana de Direitos Humanos. E não há manifestação da corte a respeito do tema.

Além disso, Barroso afirma que os casos citados pela OAB como precedentes não têm relação com o contexto brasileiro.

“A jurisprudência desta Suprema Corte é extremamente ampla em matéria de liberdade de expressão, aí incluído o direito à crítica veemente. Desse modo, o precedente invocado não guarda relação com a alegação de inconstitucionalidade, total e em abstrato, do tipo penal do art. 331 do Código Penal”, escreveu Barroso.

O relator diz, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem destacado que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e que, em casos de grave abuso, faz-se legítima a aplicação do direito penal para a proteção da honra, devendo as medidas serem avaliadas cautela.

“Ao atuar no exercício de sua função, o agente público representa a Administração Pública, situação que lhe sujeita a um regime jurídico diferenciado de deveres e prerrogativas”, disse.

Nesse contexto, ao praticar condutas idênticas às praticadas por quem não exerce função pública, é punido com maior rigor. “Também no campo penal é razoável que se prevejam tipos penais protetivos da atuação dos agentes públicos. É nesse contexto que se justifica a criminalização do desacato”, concluiu o ministro.

Ao divergir, Fachin afirmou que “não se invocam direitos fundamentais para descumprir direitos humanos. Direitos humanos são direitos fundamentais.”

O ministro afirma que o tipo de desacato é demasiadamente aberto e não permite distinguir críticas de ofensas. “Ainda que se adote a interpretação defendida pelo Relator, no sentido de não se admitirem ofensas praticadas na imprensa, nem as que sejam feitas longe da presença do funcionário público ou quando fora do exercício de suas atribuições, a abertura do tipo não esclarece se ação não se sobrepõe a outras condutas, como a de resistência ou a de desobediência”, argumenta.

De acordo com Fachin, o fato de a Corte jamais ter se manifestado sobre a compatibilidade do artigo 331 do Código Penal brasileiro com a Convenção Interamericana não exime o Estado brasileiro de fazê-lo.

Entendimento da 5ª Turma do STJ

Em dezembro de 2016, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também analisou o tema, tendo concluído, no entanto, de forma diversa. A 5ª Turma da Corte decidiu que esta tipificação penal está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado, personificado em seus agentes, sobre o indivíduo.

Para os ministros do STJ, a manutenção da prática como crime é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, que se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário.”

ANA POMPEU – Repórter em Brasília. Cobre Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Passou pelas redações do ConJur, Correio Braziliense e SBT. Colaborou ainda com Estadão e Congresso em Foco. Email: ana.pompeu@jota.info

LUIZ ORLANDO CARNEIRO – Repórter e colunista.

(Fonte: https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-decide-que-desacato-e-crime-recepcionado-pela-constituicao-de-1988-19062020#:~:text=331%20do%20Código%20Penal.,anos%20ou%20multa%20como%20pena., data de acesso: 14/06/2022)

O DESACATO E A FALTA DE RESPEITO À DEMOCRACIA

Da urgente e necessária revogação do crime de desacato no ordenamento jurídico brasileiro

Publicado por João Paulo Orsini Martinelli

há 7 anos

O seguinte texto é familiar à maioria das pessoas, inclusive aquelas que não são da área jurídica: “Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”. Quem já precisou de serviços públicos, e foi a uma repartição pública, certamente deparou-se com o aviso que informa que qualquer coisa que for dita contra o servidor pode configurar desacato sob pena de responsabilidade penal. São comuns as placas com a descrição do art. 331 do Código Penal como um aviso de boas vindas.

O crime de desacato guarda resquícios do autoritarismo do Estado Novo, período em que entrou em vigência nosso Código Penal, cuja parte especial ainda apresenta partes originais da época. Os crimes contra a Administração Pública são excessivos em nossa legislação porque, como é comum nas ditaduras, o Estado está acima da pessoa humana. Ofender o servidor público, no exercício da função, ou em razão dela, sempre foi compreendido como um atentado ao Estado que o ofendido representa. É, mais ou menos, uma reprodução codificada da célebre frase “o Estado sou eu”, atribuída a Luis XIV da França, monarca absolutista.

Em 2002, o Relatório Anual da Relatoria para a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirmou que “as leis de desacato são incompatíveis com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos”. Conforme o relatório, “a CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas. A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias.

O art. 13 da CADH protege o direito à liberdade de pensamento e de expressão. E justamente pela falta de um conceito fechado de desacato qualquer comportamento que desagrade o servidor público pode ser interpretado como tal e gerar problemas ao sujeito. Desacatar significa desrespeitar, ofender, profanar. Mesmo quando os Tribunais superiores invertem condenações arbitrárias, um longo caminho de desconforto e estigmatização deve ser percorrido por quem foi condenado ou respondeu pelo crime. Exemplos não faltam na jurisprudência, como o cidadão que manifestou indignação com a qualidade do serviço público prestado em determinada repartição (STJ, RHC 9615/RS), o advogado que aplaudiu ironicamente a atuação do promotor no Tribunal do Júri (STJ, HC 111713/SP) ou o sujeito abordado que manifestou menosprezo pelo trabalho policial (STJ, HC 243983/DF). Ainda que ofensas graves fossem proferidas ao servidor público, o problema é apenas dele, enquanto pessoa, e não do Estado. A condição de servidor não transfere à pessoa a figura do Estado, portanto, não pode haver essa desequilíbrio de um tipo penal incidir apenas sobre um grupo de pessoas ofendidas.

Quando um servidor público é ofendido no desempenho da função a ofensa atinge sua honra, qualidade da pessoa, e, portanto, a figura delitiva deve ser a injúria. A própria causa de aumento de pena prevista em lei (art. 141) para o crime contra honra praticado contra servidor é bastante duvidosa, pois lhe confere uma condição diferenciada sobre as demais vítimas. A causa de aumento, que reflete um maior juízo de reprovabilidade, caberia apenas nos casos de maior vulnerabilidade da vítima, como nos casos de injúria racial. No caso do servidor, ao contrário, fica difícil apreciar essa vulnerabilidade, uma vez que os mesmos possuem certas garantias não alcançáveis pelas demais pessoas. Ademais, quando um servidor pratica crime contra a Administração Pública, sua condição autoriza um juízo maior de reprovabilidade, não porque representa a figura do Estado, mas porque há um dever de cuidado sobre o erário público, que não lhe pertence.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a Convenção Americana de Direitos Humanos possui status de norma supralegal (RE 466343/SP), o que lhe confere posição acima do Código Penal. E sempre que houver um conflito entre a Constituição Federal e um Tratado Internacional de Direitos Humanos deve prevalecer sempre a norma que atribui maior proteção aos direitos fundamentais, no caso, a liberdade de expressão. Nesse sentido, corretamente conclui Bruno Galvão: “a decisão judicial final que condena o réu ao cumprimento de pena por ter cometido o crime de desacato viola a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos nos artigos 7 (2) – Liberdade Pessoal e 13 – Liberdade de pensamento e expressão” (Consultor Jurídico, 15/09/2012).

As condenações judiciais, em qualquer instância, por crime de desacato, ferem a Convenção Americana de Direitos Humanos e autorizam a representação do Brasil perante a Comissão Interamericana para posterior julgamento pela Corte. No dia 26/04/2013, a Defensoria Pública da União encaminhou representação à Comissão Interamericana com a notícia de que o Brasil não cumpriu a determinação de retirar o crime de desacato da legislação e, ainda, requereu a revisão de todas as condenações e a respectiva indenização aos condenados. Também a Defensoria Pública do Estado de São Paulo representou o país perante a Comissão pelos mesmos argumentos.

É fundamental que o desacato desapareça do ordenamento jurídico. O crime é um instrumento de arbitrariedade, que supostamente fundamentaria prisões em flagrante de quem desagrade um servidor público. Não há parâmetros que delimitem o alcance da incriminação, assim, qualquer coisa pode ser desacato. Enquanto não há revogação legal, cabe ao Poder Judiciário deixar de aplicar o art. 331 do Código Penal, pois este afronta um dos mais importantes tratados internacionais reconhecidos pelo Brasil. A ofensa ao servidor é um problema exclusivamente dele, da mesma forma que sempre foi para os demais cidadãos.

(originalmente publicado no portal Justificando)

João Paulo Orsini Martinelli

Advogado e professor

Advogado e consultor jurídico. Ex-Professor de Direito Penal na Universidade Federal Fluminense. Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Especializado em Direito Penal Internacional pelo International Institute of Higher Studies in Criminal Sciences (ISISC/Itália). Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisador na University of California. Especializado em compliance pela FGV/SP.

(Fonte: https://jpomartinelli.jusbrasil.com.br/artigos/162478405/o-desacato-e-a-falta-de-respeito-a-democracia, data de acesso: 14/06/2022)

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