A Lei 14.532/2023 e as mudanças promovidas na legislação criminal brasileira

A Lei 14.532/2023 e as mudanças promovidas na legislação criminal brasileira

Por Thiago Solon Gonçalves Albeche

15/01/2023

Entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2023 a Lei 14.532/2023, que procedeu a modificações no Código Penal e na Lei de Racismo, trazendo, indiretamente, repercussões no âmbito do processo penal brasileiro.

Faremos uma análise inicial sobre a correlação entre o crime de injúria preconceituosa e o crime de racismo, e, posteriormente, passaremos pelos demais dispositivos legais, realizando sua respectiva análise.

Comentários:

  1. Injúria preconceituosa: A injúria preconceituosa migrou do Código Penal para a Lei de Racismo. Perceba que a ofensa motivada pela “raça, cor e etnia” está expressa no art. 2º-A da Lei 7.716/89. Um outro detalhe importante: o termo “origem”, antes previsto no CP, transmutou-se na expressão “procedência nacional”. Desse modo, fica a pergunta: qual a extensão da expressão “procedência nacional”? Abrande apenas as ofensas aos atributos pessoais baseados no preconceito regional (entre regiões do país) ou também o preconceito ao estrangeiro? Temos duas possibilidades de interpretação: O art. 140, § 3º do CP possuía a elementar típica “origem”, que abrangia as ofensas em razão da origem nacional ou internacional. Com a nova redação do art. 2º-A dada pela lei 14.532/2023, a expressão procedência “nacional” está restrita à injúria preconceituosa de origem interna, ou seja, para pessoas pertencentes a determinados estados da federação. Eventual ofensa a atributos da pessoa em razão de sua condição estrangeira constituiria crime de injúria simples. A expressão “procedência nacional” constante no art. 2º-A abrange procedência interna e externa, ou seja, tutela pessoas de origem nacional e estrangeira. Ademais, a expressão “procedência nacional” não é nova na lei 7.716/1989, pois consta do art. 20, que sempre puniu o racismo praticado contra pessoas de origem estrangeira. Essa segunda posição nos parece mais coerente, sob pena de proteção deficiente ao bem jurídico dignidade humana, não sendo razoável imaginar que apenas os nacionais estariam tutelados pela Lei de Racismo. Além disso, a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, refere que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança (…). Assim, considerando as previsões da Lei de Racismo, tem-se que ofender a honra subjetiva da vítima em razão de sua procedência nacional ou estrangeira constitui injúria punível segundo o art. 2º-A. Por outro lado, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional constitui crime de racismo previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça possui precedente de que quem emitir ofensa discriminatória a uma coletividade em razão da sua origem nacional, como por exemplo, o povo nordestino, estará incidindo em crime de racismo previsto no art. 20, § 2º da Lei 7.716/1989 (REsp n. 1.569.850/RN, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 24/4/2018, DJe de 11/6/2018).
  2. Injúria religiosa, contra idoso ou deficiente A injúria praticada em razão da religião, da condição de idoso ou deficiente permaneceu no Código Penal. Com isto, a opção do legislador foi no sentido de que as ofensas a atributos pessoais da vítima valendo-se de elementos referentes à religião não constituem crime de racismo. Até mesmo a pena do art. 140, § 3.º permaneceu inalterada. O dolo do agente é de ofender a pessoa e, para isso, vale-se de elementos relacionados à religião. Contudo, é importante salientar a existência da figura típica do racismo religioso em suas figuras básica e equiparada. Segundo art. 20 da Lei 7.716/1989 (figura básica), constitui racismo praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Ainda, sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput do art. 20 (figura equiparada) quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. Nesses casos, o dolo do agente é de demonstrar superioridade, menosprezar, diminuir, segregar, impedir ou obstar a existência, a prática ou manifestações religiosas.
  3. Injúria racial como espécie de racismo A injúria praticada contra a pessoa em razão da raça, cor, etnia ou procedência nacional torna-se, legalmente, espécie de racismo. Por que se tornou espécie de racismo “legalmente”? Porque, jurisprudencialmente, o STJ (AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Desembargador convocado ERICSON MARANHO, SEXTA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015) e o Supremo Tribunal Federal (HC 154.248) já haviam se manifestado, ainda que parcialmente, sobre a natureza da injúria racial como espécie de racismo. O Supremo assentou que o delito de injúria racial, em sendo espécie de crime de racismo, é imprescritível. Apesar dessa posição equiparatória, o STF silenciou sobre a equiparação da injúria ao racismo quanto à natureza da ação penal (já que o racismo é de ação pública incondicionada e a injúria, antes da presente alteração, era de ação condicionada à representação, sendo possível, portanto, a ocorrência da decadência). Outro ponto omisso na decisão do STF era definir se, apesar da equiparação, o delito de injúria racial continuaria afiançável, já que o crime-parâmetro de racismo é inafiançável por mandado constitucional. A discussão, agora, está resolvida: a injúria racial é crime de ação pública incondicionada e, tendo sido inserida na Lei de Racismo, adota o mesmo regime jurídico quanto à inafiançabilidade e imprescritibilidade. A injúria racial, assim, é uma espécie de crime racial com dolo (“animus injuriandi”) diverso do crime de racismo previsto no art. 20 da Lei 7716/1989, que possui o dolo de diferenciar, segregar, diminuir, tratar de forma desigual, impedir ou restringir direitos, dentre outras formas de atuação, já que se trata de crime de ação livre.
    Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023) Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: A injúria preconceituosa, como referido é uma espécie de crime racial com dolo (“animus injuriandi”) diverso do crime de racismo previsto no art. 20 da Lei 7716/1989, que possui o dolo de diferenciar, segregar, diminuir, tratar de forma desigual, impedir ou restringir direitos, dentre outras formas de atuação, já que se trata de crime de ação livre. Assim, com a transposição do delito de injúria preconceituosa para a Lei de Racismo, há evidente aplicação do Princípio da Continuidade Típico-Normativa, não havendo que se falar em “abolitio criminis”. Considerando a alteração legislativa, note-se que o legislador procedeu a uma guinada em relação ao tratamento dispensado ao crime de injúria preconceituosa, se o compararmos com a regulamentação do crime de racismo. O delito de racismo previsto no art. 20 da Lei, que, até então, era crime mais grave do que a injúria preconceituosa, agora, possui resposta penal mais branda do que a injúria preconceituosa. A pena do art. 20 é de 1 a 3 anos de reclusão e multa, enquanto o novo art. 2º-A possui sanção de 2 a 5 anos e multa. Somente no racismo praticado por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza (art. 20, § 2º) e no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público (art. 20, § 2º-A) é que a pena privativa de liberdade do racismo será equiparada a da injúria preconceituosa (2 a 5 anos). Ainda, o crime do art. 20, que pela pena cominada possibilitava suspensão condicional do processo, foi superado pela injúria preconceituosa, que chega à Lei 7716/1989 com alguns predicados importantes: – não (mais) admite suspensão condicional do processo, já que sua pena mínima é superior a 1 ano; – não mais permite arbitramento de fiança (antes da inserção na Lei de Racismo, a injúria permitia fiança em sede policial e judicial) – é crime de ação pública incondicionada. Questão interessante: cabe acordo de não persecução penal – ANPP nos crimes de injúria preconceituosa e racismo? O oferecimento de ANPP é de titularidade exclusiva do Ministério Público. Entretanto, a possibilidade de acordo de não persecução nos crimes de racismo não é tema pacificado. Atualmente[1], os Ministérios Públicos dos Estados têm expedido orientações a seus membros sobre o tema. E a controvérsia existente se dá em razão da redação do art. 28-A do CPP, já que o ANPP será proposto “desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. Alguns entendem que não há vedação legal para a propositura do ANPP. Outra linha entende que diante do mandado constitucional de criminalização do racismo e da especial forma de reprovação e enfrentamento que a Constituição estabelece diante das desigualdades sociais e formas de discriminação, o ANPP não seria “suficiente” para a reprovação do crime. Perceba que o legislador, apesar utilizar a expressão “desde que necessário e suficiente” para que a pertinência do ANPP fosse analisada caso a caso, também fez opção expressa de vedar o seu oferecimento em determinados casos, como nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (art. 28-A, § 2º, IV do CPP). Portanto, teria andado melhor a Lei 13.532/2023 se tivesse incluído o crime de racismo, em todas as suas formas, na vedação de oferecimento de ANPP prevista no CPP, se essa fosse política criminal escolhida. Da mesma forma, parece-nos incoerente que o crime de racismo seja imprescritível e inafiançável, e permita a aplicação de institutos despenalizadores, como a suspensão condicional do processo. Ou há que se alterar a pena mínima prevista no art. 20 da Lei 7.716/1989 ou ser modificado o art. 89 da Lei 9.099/1995. Sem nova intervenção legislativa, caberá à jurisprudência enfrentar a questão.
    Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: cuida-se de causa de aumento com patamar fixo, ou seja, aumenta-se a pena EM metade, e não “até” a metade. Cuidado nas provas de concurso, pois seu examinador pode fazer esse jogo de palavras.
    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (…) § 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023) Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
    Comentários: os meios de comunicação em massa potencializam os efeitos do crime praticado. Por isso, a culpabilidade do agente revela-se maior do que nos crimes praticados perante um número reduzido de pessoas. Como inexistem barreiras no mundo virtual, o potencial danoso dos crimes praticados alcança proporções em grande escala. Assim, enquanto a figura básica do art. 20 possui pena de 1 a 3 anos, a prática do racismo por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza tem pena cominada de 2 a 5 anos. Trata-se de crime qualificado pelo meio de execução. Quando praticado por meio de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores, teremos a prática do racismo virtual ou racismo cibernético. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça possui julgado no sentido de que o crime de racismo homofóbico praticado por meio da internet nas plataformas Facebook e Youtube, ambos de abrangência internacional, é de competência da Justiça Federal. (CC n. 191.970/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/12/2022, DJe de 19/12/2022). Contudo, é preciso analisar a possível transposição de fronteiras da ofensa praticada, pois é “da Justiça estadual a competência para processar e julgar o crime de incitação à discriminação racial por meio da internet cometido contra pessoas determinadas e cujo resultado não ultrapassou as fronteiras territoriais brasileiras (HC 121283, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 29/04/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 13-05-2014 PUBLIC 14-05-2014). No mesmo sentido, assevera-se que “a jurisprudência desta Corte é no sentido de que a divulgação de mensagens incitadoras da prática de crime pela rede mundial de computadores não é suficiente para, de per si, atribuir à prática do crime a demonstração de resultado além do território nacional.” (ACO 1.780, Rel. Min. Luiz Fux).
    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (…) § 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público: (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023) Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: quando o racismo for praticado em atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, temos a cumulação da pena privativa de liberdade com a restritiva de direitos. Isso se deve à maior reprovabilidade do racismo praticado em locais com grande aglomeração de pessoas, ambientes esses destinados ao exercício de direitos como o lazer, o esporte, a cultura, que não devem ser espaços de diminuição, preconceito ou ofensas às pessoas. Infelizmente, não são incomuns os casos de racismo, por exemplo, nos estádios de futebol. Assim, o legislador, para a além da pena privativa de liberdade, cumulou a pena restritiva de direitos de proibição de frequência a determinados ambientes públicos. A esse respeito, levantamos a seguinte questão: a norma restringiu o direito de frequência apenas ao recinto ou atividade específica em que praticado o crime? Ou aquele que comete crime em estádio de futebol poderá ser proibido de frequentar um teatro, por exemplo? Trazemos duas interpretações: A restrição de frequência deve ser aplicada a todo e qualquer ambiente destinado a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, pois o que houve foi uma incontinência pública, demonstrando que o agente não soube portar-se em ambiente destinado ao convívio coletivo. A restrição de frequência limita-se às atividades em que praticado o crime de racismo. Isso porque o preceito secundário do art. 20, § 2º-A, refere que a proibição de frequência será a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso. Desse modo, exige-se um vínculo entre a restrição imposta e a atividade em que se deu a prática criminosa. Preferimos a segunda corrente em razão da segurança jurídica trazida pela expressão “conforme o caso”, prestigiando o princípio da legalidade e o postulado hermenêutico de que normas restritivas de direitos devem ser interpretadas restritivamente, especialmente em se tratando de Direito Penal. Outrossim, veja-se que a pena privativa de liberdade, caso implementados os requisitos do art. 44 do Código Penal, poderá ser substituída por pena restritiva de direitos (ex: prestação de serviços à comunidade, prestação pecuniária). A pena restritiva de direitos de frequentar os espaços públicos descritos no tipo não sofrerá qualquer tipo de substituição. Os desafios estarão concentrados na fiscalização quanto ao acesso a espaços onde se desenvolvem atividades religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público. Trata-se de modalidade de racismo qualificado pelo local da prática delitiva.
    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (…) § 2º-B Sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: caso o crime de racismo seja praticado mediante o embaraço da atividade religiosa, inclusive por meio de violência, haverá a responsabilização pelo crime de racismo, sem prejuízo da pena correspondente à violência, pois, neste caso, outro bem jurídico estará sendo violado concomitante. A lei não especificou o tipo de violência, razão pela qual, para nós, tanto a violência psicológica (ex: coação, ameaça) como a física (ex: vias de fato e lesão corporal) estão abrangidas pelo tipo penal. Note-se que, neste tipo penal, temos o crime de racismo religioso, figura de racismo equiparado, com o dolo de impedir ou embaraçar atividade religiosa. Perceba-se que esta figura é bastante diversa da injúria religiosa ou injúria por preconceito religioso remanescente no art. 140, § 3.º do CP. Na injúria por motivos religiosos do CP, o dolo é de ofender atributos pessoais do sujeito passivo, enquanto no racismo religioso, quer se impedir a prática religiosa por motivo de intolerância ou de menosprezo quanto à determinada liturgia. A opção do legislador foi clara: manter a injúria religiosa (elementos referentes à religião), injúria etária (elementos referentes à condição de pessoa idosa) e a injúria por deficiência (elementos referentes à pessoa com deficiência) como crimes não equiparados ao racismo. Sobre a consumação do delito de injúria preconceituosa, citamos precedente do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual o conhecimento acidental da ofensa por parte ofendido afasta o dolo específico de ofender. Assim, em conversas particulares em que seja imprevisível o conhecimento direto por parte do ofendido, não caracterizará o crime (STJ, REsp 1.765.673-SP, julgado em 26.05.2020). Na mesma linha, em troca de mensagens que tenham cunho de desabafo, e que não fique demonstrada a intenção de publicizar as ofensas a determinada pessoa, também não estará configurado o delito de injúria (HC n. 256.989/ES, Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 5/2/2014).
    Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: O dispositivo estabelece uma causa de aumento flexível quando o racismo por praticado para fins de descontração, diversão ou recreação. Pune-se com maior rigor o chamado “racismo recreativo” ou “racismo de entretenimento”. Tais condutas, apesar de não possuírem a intenção deliberada de agredir ou ofender diretamente à vítima, decorrem do chamado “racismo estrutural”, em que as pessoas praticam a condutas ofensivas e atentatórias a dignidade humana, acreditando que não o estão fazendo, pois se trataria de uma brincadeira. Desse modo, o “animus jocandi”, ou seja, intenção de ironizar, debochar, ainda que com a intenção de diversão, constitui motivo causa de aumento. Há que se ter o cuidado para que a causa de aumento e os próprios crimes de injúria preconceituosa e racismo não fulminem manifestações artísticas e culturais que não tenham o dolo específico de diminuir pessoas e atentar contra a sua dignidade. É preciso atenção para que a causa de aumento, indireta e inconscientemente, não suprima uma necessária constatação antecedente: deve estar configurado o dolo próprio do crime sobre o qual incidirá a majorante. Assim, diante de uma piada ou brincadeira, não há que se considerar este fato de forma autônoma, mas como circunstância complementar ao juízo prévio de tipicidade da conduta praticada. Haverá, certamente, uma zona cinzenta a ser muito bem avaliada e conformada de acordo com o caso concreto para que não haja interpretações desproporcionais dos novos dispositivos legais. Ainda, o dispositivo legal menciona ser aplicável “aos crimes previstos nesta lei”, podendo constituir por causa de aumento de qualquer um deles, especialmente nos crimes de injúria preconceituosa e racismo por raça, cor, etnia e procedência nacional e racismo religioso. Como referido anteriormente, a causa de aumento apresenta estrutura flexível ou seja, aplica-se de 1/3 até a metade, situação diversa da causa de aumento prevista para a injúria preconceituosa quando o crime é cometido por 2 ou mais pessoas (art. 2º-A, parágrafo único).
    Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: trata-se de causa de aumento flexível (de 1/3 até 1/2) aplicada aos casos de injúria preconceituosa e racismo praticados “propter officium”.Os funcionários públicos possuem uma responsabilidade maior pela evitação deste tipo de preconceito, já que representam o Estado, ente que possui a responsabilidade constitucional de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, nos termos do art. 3º, IV da Constituição Federal. Busca-se evitar a vitimização primária, quando o agente é autor direto e primário da conduta preconceituosa, bem como a vitimização secundária, quando o funcionário, em vez de realizar suas atividades com probidade e decoro no atendimento de alguma vítima, acaba por praticar revitimização (violência institucional).
    Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: O artigo 20-C possui grande importância para a Lei de Racismo, constituindo um verdadeiro vetor interpretativo. Para verificar se há crime de preconceito contra determinada pessoa ou grupo, o dispositivo determina que seja avaliado se a conduta praticada, usualmente, seria dirigida a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. O dispositivo positiva o Princípio da Alteridade, pois sugere que o intérprete considere o contexto social em que ocorreu a situação e, colocando-se no lugar dos grupos predominantes, avalie se estes seriam alvo daquele tipo de preconceito analisado. Assim, em verificando um tratamento desigual sem discrímen justificado pelo ordenamento jurídico, existe grande possibilidade de que a conduta seja considerada criminosa. Não há dúvidas de que tal regra visa a proteger os chamados grupos vulneráveis ou minorias, que merecem atenção e proteção em razão da desigualdade socialmente estabelecida em determinados contextos, sem nunca esquecer o intérprete de um dado fundamental e imprescindível: o dolo do agente. Contudo, ainda é importante salientar que a diretriz interpretativa do art. 20-C não poderá ter como consequência a impossibilidade de que pessoas de qualquer cor, etnia ou procedência não possam ser tutelados pela Lei 7.716/1989, sob pena de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade. Todas as ofensas e atos de racismo devem ser analisados casuisticamente e de acordo com o contexto em que praticados.
    Art. 20-D. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou defensor público. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
    Comentários: O legislador pretendeu garantir um melhor exercício de direitos por parte das vítimas dos crimes de racismo. Assim, tanto na área cível, em que poderá ser pleiteada indenização por danos materiais e morais, como na área criminal (participação do processo como assistente de acusação) estará garantida a participação de defensor, seja ele constituído, nomeado ou público. Veja-se que a lei não menciona o acompanhamento da vítima por defensor na fase do inquérito policial, pois a lei estabelece essa participação em todos os “atos processuais”. Assim, não há obrigação legal para que Delegado de Polícia atue, de ofício, para garantir a assistência por defensor à vítima durante todos os atos do inquérito policial. Contudo, caso a vítima possua defensor, a participação do profissional será permitida em todos os atos do inquérito que estejam relacionados à vítima, ressalvados os atos e diligências investigatórias cujo conhecimento possa comprometer a eficácia das investigações. A medida legislativa possui clara conexão com o movimento criminológico de “redescobrimento da vítima”, que por muito tempo esteve relegada às áreas da seguridade social e do direito civil, sem a atenção do Direito Penal e do Processo Penal. Neste sentido, “o Estado Social não pode ser insensível aos prejuízos que a vítima sofre em consequência do delito (vitimização primária) e como consequência da investigação e do próprio processo (vitimização secundária). A efetiva ressocialização da vítima exige intervenção positiva dos particulares e dos poderes públicos dirigida a satisfazer solidariamente suas necessidades e expectativas reais.”[2]
    Nota final: O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADO 26, entendeu que a homotransfobia constitui espécie de racismo social que encontra respaldo na Lei 7.716/1989. Malgrado as severas críticas tecidas ao STF no sentido de que a Corte teria atuado como legislador positivo criando tipo penal em ofensa ao princípio da legalidade estrita (lei em sentido estrito, ou seja, lei proveniente do parlamento), o fato é que o legislador não aproveitou a oportunidade para, por meio da Lei 14.532/2023, positivar, de modo expresso, o crime de homotransfobia. Por ora, continua-se com a criminalização do racismo por via interpretativa decorrente da decisão do Supremo Tribunal Federal. A esse respeito, veja decisão no MI 4733/DF: “(…) 6. Mandado de injunção julgado procedente, para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero (…).” Verifica-se que ao tempo da decisão do STF, não havia a figura da injúria preconceituosa na Lei 7.716/1989. Portanto, a prática de homotransfóbia, necessariamente, poderia ser enquadrada em poucos artigos da Lei de Racismo, a exemplo do art. 4º, § 1º e art. 20, os quais traziam a expressão “raça” sobre a qual se aplicaram o conceito e interpretação de racismo em sua dimensão social. Agora, com o art. 2º-A, que também traz o elemento típico “raça”, a conduta preconceituosa em razão da orientação sexual e do gênero deve ser analisada no caso concreto para a verificação sobre a configuração do crime de injúria preconceituosa (art. 2°-A) ou de racismo (art. 20).

[1] Este artigo foi escrito em 13 de janeiro de 2023.

[2] GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. O que é criminologia? 1. Ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 31

(Fonte: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2023/01/15/a-lei-14-532-2023-e-as-mudancas-promovidas-na-legislacao-criminal-brasileira/, data de acesso, 24/06/2023)

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