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Bettina Musall 30/11/2009 – 00h01
Ele ronca, ela sofre. Mas muitos casais insistem em dormir juntos porque temem que camas separadas os distanciem emocionalmente. Entretanto, segundo os cientistas, esses casais ignoram as descobertas que dizem que estar bem descansado – em vez de dormir abraçadinho – pode ser muito mais importante para manter um casamento saudável.
Era o começo dos anos 80. Manifestantes protestavam nas usinas nucleares de Brokdorf e Gorleben, Nena cantava sobre seus 99 balões vermelhos, e o Bayern de Munique era campeão da liga de futebol pela 9ª vez. Também foi nessa época que Lucy e Jürgen montaram sua primeira cama de casal em sua casa perto de Stuttgart. A cama de madeira de montar de uma companhia sueca tinha apenas estreitos 140 centímetros de largura. Eles a cobriram com lençóis de cetim brilhantes da mesma cor roxa da camiseta que Lucy usava como camisola, e Jürgen simplesmente deixava sua fina gravata de couro cair no chão antes de subir na cama. Afinal, eles viviam em pecado. Quase 30 anos, a compra de uma casa, vários casos extraconjugais e dois filhos mais tarde, o primeiro ninho de amor dos dois foi rebaixado, transformando-se na cama de hóspedes no porão.
No andar de cima, no quarto principal, eles podem até ter evoluído para um colchão king-size, mas Lucy só consegue dormir em breves intervalos. As crianças são em parte culpadas por isso; embora tenham 8 e 10 anos de idade, ainda vão para a cama de seus pais. Mas o principal motivo é o ronco estrondoso de Jürgen, que é interrompido – embora rara e brevemente – por uma desconcertante apneia. Já faz tempo que as coisas não são mais tão animadas entre eles. Na verdade, seu relacionamento é mais silencioso, e Lucy às vezes fantasia quanto ao divórcio. Mas camas separadas? “De jeito nenhum”, diz ela enfaticamente. “Pense nas crianças. E o que teríamos em comum depois disso?” Felicidade matrimonial acaba no quarto.
Boa pergunta. O que soa como um caso de conflito matrimonial limítrofe é, na verdade, uma saga diária no quarto dos alemães comuns. Não importa o quanto um casamento ou relacionamento esteja desgastado pelas brigas, dividir a cama é a expressão de uma ligação que vai contra tudo o que os cientistas e conselheiros matrimoniais dizem que devemos fazer para dormir de forma saudável e manter a felicidade matrimonial. Mesmo assim, apesar das provas científicas, cerca de metade dos casais que dividem a mesma cama insistem que dormem melhor desse jeito.
Agora, entretanto, pesquisadores do laboratório do sono da Universidade de Viena confirmaram a declaração de Loriot, um dos grandes humoristas alemães, de que homens e mulheres não combinam – mesmo quando estão inconscientes. Os estudiosos do sono de Viena não deixaram pedra sobre pedra em suas pesquisas sobre como as pessoas dormem. Médicos, biólogos, psicólogos, behavioristas e sociólogos foram chamados para analisar como o fato de dividir a mesma cama afeta “a qualidade do sono, o bem-estar geral e a qualidade do relacionamento em questão”. Ao redigir seu estudo, eles intercalaram anedotas culturais e históricas sobre os hábitos de dormir em meio à apresentação dos dados sérios da pesquisa. Não é só uma questão de sono.
É seguro dizer que se retirar aos pares não é necessariamente a maneira mais interessante de descansar durante a noite. Membros de algumas sociedades na África e Ásia buscam calor e segurança à noite em grupos maiores. Mas, como resultado da moral social e religiosa do século 17, dormir a dois se tornou o modelo nas sociedades ocidentais – com a expectativa de que dormir não fosse a única atividade realizada pelo casal. Os franceses, por exemplo, preferiam dormir com uma camisola de linho, a chamada “chemise cagoule”, que tinha uma abertura convenientemente localizada na altura da virilha. Ao mesmo tempo, em algumas partes dos Estados Unidos, que na época era um baluarte do puritanismo, os cônjuges poderiam enfrentar penalidades criminais por irem para a cama juntos, mesmo que vestidos, a menos que tivessem uma séria intenção de procriar. De fato, as pessoas mais abastadas tinham quartos separados para o homem e a mulher da casa, um luxo que os pesquisadores dos dias atuais se esforçam para promover novamente.
A pesquisadora de planejamento familiar feminista Marie C. Stopes admite que, no começo do século 20, os casais que compartilhavam o mesmo quarto podiam ter períodos de paixão de vez em quando. O resultado disso, entretanto, é o testemunho constante de “rituais pouco atraentes e até mesmo absurdos de higiene pessoal”.
Stopes teme que essas demonstrações possam diminuir o desejo que os membros do casal sentem um pelo outro, o que não é exatamente conveniente para um casamento. E, mesmo assim, o delicado equilíbrio da harmonia na cama de casal diz respeito a coisas bem mais mundanas do que o sexo. Ela quer ler, ele quer assistir ao jogo na TV. Ele prefere dormir com a janela aberta mesmo quando está gelado lá fora; ela treme debaixo de uma colcha de penas de ganso. Um cobertor ou dois? O colchão deve ser de mola, espuma ou penas? Quer se trate de juntar os panos, ter filhos ou envelhecer juntos, as longas parcerias constantemente se deparam com obstáculos que podem prejudicar o tradicional ritual de dividir a cama.
Fora os diferentes hábitos de sono, inúmeros estudos também concluíram que uma das razões pelas quais dividir a cama pode ser tão irritante é porque há diferenças genéticas na forma que os homens e as mulheres dormem. Por exemplo, as mulheres precisam de mais descanso do que os homens, vão para a cama mais cedo, sentem frio com mais frequência e querem dormir mais de manhã, apesar de também terem uma tendência a acordar cedo.
Os homens, por outro lado, têm mais facilidade para manter a temperatura do corpo constante, e esta é uma das razões pelas quais especialistas em Viena dizem que os homens são muito bem equipados para esquentar suas parceiras. Os homens são normalmente mais ativos à noite, roncam com mais frequência e conseguem dormir com interrupções. A maioria dos homens não sabe que suas mulheres acordam muito e têm horas de insônia – e continuam descansando, sem se perturbar, ao lado delas.
A diferença da atividade hormonal entre homens e mulheres também se traduz em períodos dessincronizados de luz e sono profundo, o que acaba sendo mais difícil para as mulheres. O sono do homem não é o sono da mulher Nessas circunstâncias, não surpreende o fato de que os homens digam que dormem mais pesado com suas parceiras na cama do que quando elas não estão. Por outro lado, as mulheres dizem que acordam com mais frequência por causa dos parceiros, ou porque o ruído vindo do outro lado da cama se tornou intoleravelmente alto ou porque a distribuição de peso desigual no colchão as sacode como se estivessem num trampolim toda vez que o companheiro de cama muda de posição (o que ele faz, a propósito, até 30 vezes por noite).
Pesquisadores também dizem que o fato de as mulheres terem mais dificuldade de relaxar à noite tem a ver com a divisão ainda comum das responsabilidades domésticas dentro da sociedade. As mães, que predominantemente desempenham o papel de cuidadoras na família – ou seja, satisfazendo as necessidades dos filhos, cuidando dos mais velhos e se preocupando com os adolescentes que não voltam para casa no horário combinado à noite – ficam numa espécie de plantão de “controle de tráfego aéreo” à noite, como uma forma de evitar conflitos e acidentes.
E não dá para simplesmente apertar um botão e relaxar. Com a idade, os padrões de sono dos dois gêneros ficam ainda mais pronunciados. As mulheres sofrem de síndrome das pernas inquietas, enquanto os homens gradualmente perdem sua capacidade de dormir profundamente. Os que gostam de tirar sonecas durante o dia percebem que não conseguem cair no sono ou permanecer dormindo durante a noite. E, apesar do fato de que a maioria dos homens é impressionantemente insensível em relação a seus próprios odores corporais, as mulheres não o são. Nem mesmo um casal que borrifar Chanel No. 5 – cujas qualidades soporíferas eram louvadas até por Marilyn Monroe – poderá disfarçar o odor emitido por pijamas de flanela e meias de lã. Da mesma forma, os cientistas identificaram quase uma centena de diferentes fatores que atrapalham o sono. Então, há alguma surpresa no fato de que os casais não consigam descansar facilmente quando todos os problemas se juntam? Abraçando os lençóis que os unem
Apesar de tudo pelo que têm de passar, ainda são principalmente as mulheres que se opõem a abrir mão da proximidade, da confiança e da sensação de segurança que dividir uma cama proporciona. “Eu não conseguiria cair no sono sem meu marido. Sempre fui assim, a vida toda”, disse uma mulher de 69 anos de Munique para o estudioso do sono norte-americano Paul C. Rosenblatt, que entrevistou 42 casais sobre seus hábitos noturnos.
Suas descobertas foram claras: há muito mais do que sono e sexo envolvidos ao ir para a cama com outra pessoa. O costume diz mais respeito a nutrir e manter um relacionamento. Com frequência, pessoas que vivem juntas só descobrem o que de fato move seu parceiro – suas experiências, aspirações, preferências e irritações – quando estão dormindo na mesma cama.
Os alemães assistem a uma média de 3,5 horas de televisão por dia. De acordo com estatísticas compiladas por conselheiros matrimoniais, os casais passam apenas cerca de oito minutos por dia conversando. Então, faz sentido que eles pelo menos passem a noite juntos. Apesar do que as descobertas científicas indicam, nossa sociedade de camas de casal tende a associar quartos separados com a diminuição do amor e o começo da separação.
Algumas pessoas têm vergonha do que os filhos poderiam pensar; outras temem que isso seja um sinal de que o parceiro está se distanciando tanto física quanto emocionalmente. Uma coisa é certa: tendo passado pelo período de paixão cega no qual poucas pessoas se preocupam em ter um sono livre de interrupções, muitas pessoas percebem que precisam desesperadamente de uma boa noite de sono. Isso, por sua vez, é precursor de uma fase mais fria na cama. De acordo com os pesquisadores, isso acontece principalmente de forma não-verbal e seu resultado desafortunado é que, ao longo dos anos, o casal começa a ter desentendimentos e experimentar uma agressão inconsciente.
O psicólogo do sono vienense Gerhard Klösch diz que acordar com uma vaga sensação de ódio ou raiva pode simplesmente ser resultado de ter passado mais uma noite ao lado de uma pessoa que ronca. Klösch também diz que a questão da qualidade de sono dos dois parceiros deveria ser tratada logo, abertamente, em conjunto e com muita compreensão, em vez de esperar até que um dos companheiros desenvolva olheiras.
Assim, se depois de 15 anos em um relacionamento, você percebe que está ansioso pela próxima viagem de negócios para que possa ter uma noite de sono decente novamente, você deveria conversar com sua parceira sobre isso sem demora – ou, em vez disso, buscar um terapeuta que possa investigar com mais profundidade os motivos pelos quais você prefere tornar a vida miserável para si mesmo. Para uma viúva de Munique, entretanto, isso não é mais possível.
Desde que seu marido morreu, ela passou a dividir sua cama de casal de tamanho padrão com dois ursos de pelúcia. Ela diz que aprecia o fato de agora poder se esticar. “Mas se pudesse ter meu marido de volta ao meu lado novamente”, admite, “eu abriria mão desse privilégio num instante.”
Tradução: Eloise De Vylder