Publicado por Vicente de Paula Rodrigues Maggio
Resumo: o presente artigo tem a finalidade de apresentar uma análise detalhada do crime de ASSÉDIO SEXUAL (CP, art. 216-A, caput), visando possibilitar aos operadores do direito uma reflexão sobre as particularidades do delito diante da legislação atual, especialmente em razão da duvidosa necessidade de ser o assédio sexual considerado crime pela Lei 10.224/2001.
A referida figura típica tem sido alvo de inúmeras críticas, especialmente, por dois motivos: (1) pouquíssimos são os casos a respeito de fatos que, em tese, poderiam constituir o delito em estudo, em obediência ao princípio da subsidiariedade (ultima ratio) do Direito Penal; (2) dependendo da conduta do agente, poderíamos subsumi-lo a alguma das infrações penais já existentes (constrangimento ilegal, estupro etc.), variando o crime de acordo com a gravidade da conduta em razão dos meios de execução empregados.
Entretanto, uma vez em vigor o dispositivo legal e, diante da efetiva possibilidade de sua aplicação no caso concreto, justifica-se o presente estudo.
Sumário: 1. Introdução – 2. Classificação doutrinária – 3. Objetos jurídico e material – 4. Sujeitos do delito – 5. Conduta típica – 6. Elemento normativo do tipo – 7. Elemento subjetivo – 8. Consumação e tentativa – 9. Causas de aumento de pena – 10. Casos especiais – 11. Pena e ação penal.
Introdução
O crime de assédio sexual consiste no fato de o agente “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (CP, art. 216-A, caput).
O assédio sexual foi, desnecessariamente, considerado crime pela Lei 10.224/2001, visto que até então os casos de assédio sexual sempre foram satisfatoriamente solucionados fora da órbita penal, ou seja, por outros ramos do ordenamento jurídico (Direito Civil, Direito do Trabalho e Direito Administrativo). Na prática, o tipo penal quase não é usado, em obediência ao princípio da subsidiariedade (ultima ratio). São poucas as ações penais imputando a alguém o delito em estudo e raríssimas são as condenações, mesmo diante da freqüência com que os casos de assédio sexual ocorrem nos mais diversos ambientes de trabalho.[1]
São três os elementos que integram o delito: (1) a conduta de constranger alguém; (2) com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual; (3) devendo o agente prevalecer-se de sua condição de superior hierárquico ou de ascendência inerentes ao exercício do emprego, cargo ou função.
Classificação doutrinária
Trata-se de crime próprio (tanto em relação ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo, visto que a lei exige uma relação hierárquica ou de ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função), plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo (decorre de uma atividade positiva do agente “constranger”) e, excepcionalmente, comissivo por omissão (quando o resultado deveria ser impedido pelos garantes – art. 13, § 2º, do CP), de forma livre (pode ser cometido por qualquer meio de execução, exceto a violência ou grave ameaça), formal (se consuma sem a produção do resultado naturalístico, embora ele possa ocorrer), instantâneo (uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga), monossubjetivo (pode ser praticado por um único agente), doloso (não há previsão de modalidade culposa), não transeunte (quando praticado de forma que deixa vestígios), ou transeunte (quando praticado de forma que não deixa vestígios).
Objetos jurídico e material
O objeto jurídico do crime de assédio sexual é a liberdade sexual, relacionada ao ambiente de trabalho, no sentido de a vítima não ser importunada por pessoas que se prevalecem da sua condição de superior hierárquico ou de ascendência. Objeto material é a pessoa constrangida (homem ou mulher), sobre a qual recai a conduta criminosa do agente.
Sujeitos do delito
O assédio sexual é crime próprio, assim, o sujeito ativo somente pode ser a pessoa (homem ou mulher) que se encontre na posição de superior hierárquico ou de ascendência em relação à vítima, decorrente do exercício de emprego, cargo ou função. Sujeito passivo é a pessoa (homem ou mulher) que estiver ocupando o outro polo dessa relação hierárquica ou de ascendência, encontrando-se em posição de subalternidade em relação ao agente.
Conduta típica
O núcleo do tipo penal está representado pelo verbo constranger que possui dois significados distintos: (1) Se acompanhado de algum complemento, significa compelir, coagir, obrigar ou forçar a vítima a fazer ou não fazer algo, tal como ocorre nos crimes de constrangimento ilegal (CP, art. 146) e no estupro (CP, art. 213); (2) Se desacompanhado do complemento, como no caso do assédio sexual, o verbo constranger significa incomodar, importunar, insistir com propostas à vítima, para que com ela obtenha vantagem ou favorecimento sexual, existindo, em regra, uma ameaça (não grave) expressa ou implícita relacionada a algum prejuízo para a vítima em sua relação de trabalho. A própria palavra “assédio” tem o significado de importunar, molestar, com perguntas ou pretensões insistentes.
Para caracterizar o crime de assédio sexual, o constrangimento pode ser realizado verbalmente, por escrito ou gestos, ficando afastado o emprego de violência ou grave ameaça, pois, caso contrário, o delito seria o de estupro (CP, art. 213), em razão da finalidade sexual do agente. Assim, o verbo constranger alcança outra dimensão, resultando em uma modalidade específica de constrangimento ilegal (princípio da especialidade), ou seja, sem violência à pessoa ou grave ameaça.
O emprego de ameaça não é elementar do crime, de modo que sua existência não é requisito para a configuração do assédio sexual. É possível que o superior hierárquico cometa o crime em estudo (sem ameaça), simplesmente pelo fato de insistir em prometer uma vantagem para a vítima (“caso aceite a relacionar-se comigo, farei com que seja promovida”). Entretanto, é comum o emprego da ameaça, entendida como não grave (“caso não aceite relacionar-se comigo, farei com que seja transferida para a filial que temos em outro Estado”).
Como bem observa Rogério Greco, “essa ameaça deverá sempre estar ligada ao exercício do emprego, cargo ou função, seja rebaixando a vítima de posto, colocando-a em lugar pior de trabalho, enfim, deverá sempre estar vinculada a essa relação hierárquica ou de ascendência, como determina a redação legal”.[2] Assim, se o assédio ocorrer fora do ambiente de trabalho, desvinculado da posição de hierarquia ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, não há falar no crime em estudo de assédio sexual.
Distinção: o crime de assédio sexual não se confunde com o assédio moral. No assédio sexual o constrangimento é dirigido à obtenção de vantagem ou favorecimento sexual. No assédio moral a conduta consiste em humilhar, constranger moralmente a vítima, colocá-la em situação vexatória etc. O assédio moral não está tipificado no Direito Penal, mas esses casos são solucionados pelo Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Administrativo e até mesmo pelo Direito Penal como constrangimento ilegal ou ameaça (CP, arts. 146 e 147), conforme o caso.[3]
Elemento normativo do tipo
Nos termos do dispositivo legal em estudo, para configurar o crime de assédio sexual, é necessário o elemento normativo “condição de superior hierárquico ou ascendência” da qual o agente se prevalece diante da vítima cometendo abuso no exercício de emprego, cargo ou função. Cabe ao juiz a análise valorativa sobre a efetiva existência do abuso. Ausente esse elemento, o fato é atípico.
Superior hierárquico é o funcionário que possui, em relação a outros, maior autoridade na estrutura administrativa pública (civil ou militar). Assim, não configura o crime de assédio sexual entre funcionários do mesmo nível hierárquico, como também no caso em que o agente assedia seu superior hierárquico.
Ascendência significa a superioridade em termos de poder de mando, que alguém (empregador ou empregado) possui na relação de emprego com outros, dentro da estrutura administrativa civil particular. Assim, também não configura o crime de assédio sexual entre empregados do mesmo escalão, como também no caso em que o agente assedia alguém que possui maior poder de mando.
Emprego é a relação trabalhista estabelecida na esfera civil particular entre aquele que emprega, pagando remuneração pelo serviço prestado, e o empregado, aquele que presta serviços de natureza não eventual, mediante salário e sob ordem do primeiro. Cargo, para fins do delito em estudo, é o público correspondente ao posto criado por lei na estrutura hierárquica da administração pública, com denominação e padrão de vencimentos próprios. Função, para fins do delito em estudo, é a pública consistente no conjunto de atribuições inerentes ao serviço público, mas não correspondentes a um determinado cargo ou emprego.[4]
Elemento subjetivo
O elemento subjetivo do crime de assédio sexual é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de importunar alguém com perguntas ou pretensões insistentes. É necessário, ainda, o fim especial de agir, contido na expressão “com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual”.
O termo vantagem quer dizer ganho ou proveito; favorecimento significa benefício ou agrado. A vantagem ou favorecimento podem ser de diversas ordens, desde que tenham cunho sexual, podendo ser para o próprio agente ou para terceiro, ainda que sem o conhecimento deste. Estando ciente o terceiro, e agindo com dolo, caracteriza-se o concurso de pessoas. [5] O tipo penal não admite a modalidade culposa.
Consumação e tentativa
O assédio sexual é crime formal, que se consuma sem a produção do resultado naturalístico, embora ele possa ocorrer. Consuma-se, portanto, no momento em que o agente constrange a vítima, independentemente da efetiva obtenção da vantagem ou favorecimento sexual visados.
A tentativa é possível por se tratar de crime plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), permitindo o fracionamento do iter criminis. É o que ocorre, por exemplo, quando o assédio tenha sido tentado na forma escrita, cuja correspondência, em razão de extravio, chega às mãos de terceira pessoa.
Causas de aumento de pena
Nos termos do § 2º, do art. 216-A, do Código Penal, a pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 anos. Entretanto, se a vítima é menor de 14 anos, o crime é de estupro de vulnerável, e não de assédio sexual com pena aumentada, em estudo. Esse dispositivo foi inserido no Código Penal pela Lei 12.015/2009, sem mencionar ou renumerar o parágrafo único vetado anteriormente, ou seja, inseriu-se um § 2º, sem notar que nunca existiu o § 1º.
Aplicam-se, ainda, ao crime de assédio sexual, bem como nos demais delitos previstos no Título dos crimes contra a dignidade sexual, as causas de aumento de pena previstas nos arts. 226 e 234-A, do Código Penal, com algumas adaptações necessárias, a saber:
(a) Aumento de quarta parte, se o crime é cometido em concurso de duas ou mais pessoas (CP, art. 226, I)- Esse aumento de pena tem fundamento na maior facilidade obtida pelo agente no emprego dos meios de execução do delito.
(b) Aumento de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador da vítima, ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela (CP, parte do art. 226, II), além de ser, também empregador ou superior hierárquico.
Quanto ao preceptor (aquele que ministra educação individualizada) não é possível aplicar a causa de aumento, pois se refere ao professor, que não é sujeito ativo do delito em estudo. Também não se aplica essa causa de aumento, na hipótese em que o agente é empregador da vítima, para não violar o princípio do non bis in idem (da não incidência duas vezes sobre a mesma coisa).
Aplicando a causa de aumento em estudo, evidentemente não pode ser aplicada a agravante genérica que se refere a crime cometido contra descendente, irmão ou cônjuge (CP, art. 61, II, e), para não incidir no bis in idem, pois o fato já é considerado como a causa especial de aumento de pena, em estudo.
(c) Aumento de metade, se o crime resultar gravidez (CP, art. 234-A, III)- Esse aumento de pena se justifica pelo fato do crime ofender a dignidade sexual e ainda resultar em uma gravidez indesejada.
(d) Aumento de um sexto até metade, se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador (CP, art. 234-A, IV)- Esse aumento de pena incide quando o sujeito, agindo com dolo direto (sabe) ou eventual (deve saber), contamina a vítima por meio do contato sexual. A exasperante exige o efetivo contágio, diversamente dos crimes de perigo (CP, arts. 130 e 131) que se consumam independentemente da transmissão da moléstia.
É possível que no mesmo caso concreto incida mais de uma causa de aumento de pena. Nesse caso, pode o juiz limitar-se a uma só causa de aumento de pena, desde que opte pela maior (CP, art. 68, parágrafo único).
Casos especiais
(a) Superior apaixonado – é comum um chefe se apaixonar por sua secretária ou por alguém que lhe seja inferior na relação de trabalho, desencadeando uma perseguição com insistência de propostas à vítima. Tal conduta pode ou não caracterizar o crime de assédio sexual, conforme o caso concreto: (1) mesmo estando o agente apaixonado pela vítima, exigindo dela favores sexuais, valendo-se da condição de superior na relação de emprego, o crime está configurado; (2) se ficar nitidamente demonstrado que a intenção do agente não era a de obter um simples favorecimento sexual, mas uma relação estável e duradora, o fato é atípico em razão da ausência do elemento subjetivo específico “com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual”, algo incompatível com a busca de um relacionamento sério.
(b) Relação entre patrão e empregada doméstica – pode configurar o crime de assédio sexual, mesmo que essa relação de emprego não seja diária, como no caso das denominadas “faxineiras” ou “diaristas”, sob o argumento, por exemplo, de que serão demitidas, caso não atenda aos apelos sexuais do agente.
(c) Relação entre professores e alunos – mesmo considerando a superioridade entre professor e aluno, não se caracteriza o crime de assédio sexual entre essas pessoas, em razão da ausência entre elas do vínculo de trabalho que, na realidade, existe somente entre o estabelecimento de ensino e o professor.
(d) Líderes religiosos e seguidores – os líderes religiosos (padres, bispos, pastores etc.) gozam do respeito irrestrito dos seus seguidores, especialmente em razão da fé religiosa, mas não há entre eles relação inerente ao exercício do emprego, cargo ou função.
Consequentemente, o constrangimento do líder religioso dirigido a um fiel, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, não caracteriza o crime de assédio sexual, podendo caracterizar o delito de estupro (CP, art. 213), a ser avaliado diante do caso concreto, desde que na execução o agente empregue a violência à pessoa ou grave ameaça.
(e) Assédio dirigido a prostituta – a garota (ou garoto) de programa pode perfeitamente ser vítima do crime de assédio sexual, em estudo. Pode ser que a vítima, além da prostituição, exerça outra profissão, como a de secretária em determinada empresa. No exemplo de Cleber Masson, “se seu chefe descobrir esta outra atividade, e em razão disso constrangê-la para fins sexuais, sob pena de revelar seu segredo ao presidente da empresa, forçando sua demissão, estará caracterizado o crime de assédio sexual”. [6]
Pena e ação penal
PENA DO CRIME DE ASSÉDIO SEXUAL – Artigo 216-A do Código Penal
FIGURA TÍPICA
FUNDAMENTO
ESPÉCIE DE PENA
QUANTIDADE
Simples
(caput)
Detenção
De 1 a 2 anos
Se a vítima é menor de 18 anos
§ 2º
Aumento de até um terço
AUMENTO DE PENA
Cometido em concurso de duas ou mais pessoas
Art. 226, I
Aumento de quarta parte
Se o agente é ascendente, padrasto, tio, irmão etc.
Art. 226, II
Aumento de metade
Se o crime resultar gravidez
Art. 234-A, III
Aumento de metade
Se o agente transmite doença à vítima
Art. 234-A, IV
Aumento de um sexto até metade
Na figura simples, em razão da pena máxima cominada não ser superior a dois anos, constitui infração penal de menor potencial ofensivo, sendo possível a conciliação e a transação penal (Lei 9.099/95, arts. 61, 72 e 76).
A ação penal é pública condicionada à representação, salvo quando se tratar de vítima menor de 18 anos, hipótese em que a ação é pública incondicionada (CP, art. 225), e o processo corre em segredo de justiça (CP, art. 234-B).
[1]. MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal – Direito Penal – Parte Especial – Volume 3. São Paulo: Método, 2ª ed., 2012, pp. 45-46.
[2]. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial – Volume III. São Paulo: Impetus, 9ª ed., 2012, p. 520.
[3]. Nesse sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direto Penal – Parte Especial – Volume 4. São Paulo: Saraiva, 6ª ed., 2012, p. 88.
[4]. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 11ª ed., 2012, p. 962.
[5]. JESUS, Damásio E. De. Direito Penal – Parte Geral -Volume 3. São Paulo: Saraiva, 20ª ed., 2011, p. 151.
[6]. MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal – Direito Penal – Parte Especial – Volume 3. São Paulo: Método, 2ª ed., 2012, p. 49.
AUTOR:
Vicente de Paula Rodrigues Maggio
Advogado e Professor
Advogado militante formado pela UnG; mestre em direito pelo Mackenzie e doutor em direito penal pela PUC-SP. Professor de direito penal e processo penal em cursos de graduação e pós-graduação. Avaliador de cursos de direito pelo MEC (pertence ao Banco de Avaliadores do Sinaes (BASis).