Autora: Teresinha de Fátima Marques Vale | Data de publicação: 04/05/2020
Advogada, Mediadora e Economista, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família do Maranhão – IBDFAM-MA, Presidente da Comissão do Direito das Famílias da OAB/MA, Especialista em Direito Processual Civil (Universidade Cândido Mendes) e Direito de Família e Sucessões (LFG), Mestranda em Ciências Jurídicas (Universidade Autônoma de Lisboa – UAL). Instagram: @tetemarquesvale
E-mail: tetefmv@raimundomarques.adv.br
Nos últimos dias, o mundo inteiro – para não dizer o planeta Terra – vem enfrentando um inimigo comum: a pandemia decorrente da COVID-19, que, como amplamente já divulgado e esclarecido pelos diversos meios de comunicação, é uma doença causada pelo coronavírus SARS-Cov-2. Tal vírus tem provocado diversos problemas de ordem econômica, social e patrimonial, os quais se refletem até mesmo e diretamente nas relações familiares.
Cediço que, diante do alto risco de contágio, fartamente sustentado pelas autoridades competentes – inclusive e principalmente pela OMS (Organização Mundial da Saúde) –, as pessoas têm procurado seguir as orientações necessárias ao enfrentamento do agente viral, o que requer ações drásticas, dentre elas, a tão falada e vivenciada “quarentena”, que envolve o confinamento social como medida fundamental ao combate dos efeitos nefastos do temido vírus. Trata-se de uma estratégia que vem interferindo no convívio entre pais e filhos.
Infelizmente, as recomendações de isolamento social, emanadas das autoridades sanitárias, nos três níveis federativos, têm sido, em alguns casos, utilizadas como pretexto para a prática de alienação parental, instituto regulado na Lei nº 12.318/2010, em prejuízo do exercício do poder familiar, porquanto interfere, sobremaneira, na formação psicológica da criança e do adolescente. Tal prática constitui um dos maiores problemas enfrentados pelas famílias na atualidade, na medida em que dificulta, ou mesmo impede, o convívio de um dos pais com seus filhos, vilipendiando os direitos recíprocos, e, por conseguinte, desestabilizando toda a família.
Pertinente ressaltar, nesse ponto, sobretudo nesta época de crise, de ansiedade e de medo do desconhecido, que o simples fato de um dos pais postular a suspensão momentânea do exercício da autoridade parental do outro, não significa que esteja praticando alienação parental, pois tal ato, isoladamente, não tem o condão de configurar-se como tal.
Certo é que as atitudes desequilibradas do casal parental[1] têm provocado um acréscimo no número de demandas nas Varas de Família nesse período de pandemia, sendo a maioria delas relativas à convivência paterno-filial e pensão alimentícia.
Em se tratando do convívio com a prole, muitos pais separados, insatisfeitos com o distanciamento por força da quarentena, estão invocando o Poder Judiciário – o que é plenamente compreensível – para recuperar tal direito, que tem sido minado pelo guardião da custódia física dos menores, seja no compartilhamento da guarda ou mesmo na guarda unilateral, geralmente sob a alegação de que os deslocamentos constantes dos filhos podem submetê-los a um risco maior de contágio.
Pincelando-se, rapidamente, o conceito dos dois tipos de guarda, atrás mencionados, entende-se por guarda exclusiva ou unilateral a que confere unicamente ao genitor guardião – na prática geralmente a mãe – o poder de decidir sobre a vida do filho, cabendo ao outro apenas o direito de convivência e fiscalização, e o dever de prover os alimentos. Essa modalidade, decorrente do modelo patriarcal que vigorou por muitos anos, ainda é a mais praticada no Brasil. Já a guarda compartilhada, respeitando os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, valorados pela Constituição Federal de 1988, atribui aos pais, de forma equânime, o exercício da autoridade parental.
Não obstante o surgimento da Guarda Compartilhada, ainda nos dias de hoje, geralmente a custódia física da prole ainda é atribuída às mães. Tal instituto, disciplinado pela Lei nº 11.698/2008, com as alterações da Lei nº13.058/2014, estabeleceu, como regra, o compartilhamento da guarda dos filhos comuns, entre os pais separados, em caso de discordância.
A realidade, no entanto, é que tal modalidade de guarda, apresenta-se, muitas vezes, como um tipo de guarda exclusiva disfarçada, posto que um dos genitores ainda se comporta como mero visitante, praticando ou mesmo sujeitando-se àquele abominável “esquema” de ser pai aos fins de semana e feriados alternados.
A guarda conjunta representa uma grande conquista, aos pais e filhos, uma vez que visa preservar a continuação da convivência destes com aqueles. Ademais, reduz o distanciamento de um dos genitores, após a dissolução do vínculo conjugal. Infelizmente, nem sempre é ou pode ser aplicada, por melhor que tenha sido a intenção do legislador.
Independentemente de tal constatação, questiona-se: até que ponto o guardião tem o direito de impedir esse convívio, mesmo em tempos de pandemia?
Sem pretensão de esgotar o tema, cabem algumas pontuações a respeito dessa problemática que tanto sofrimento causa, aos pais, filhos e a toda família.
A legislação brasileira não deixa qualquer dúvida quanto à titularidade e exercício do poder familiar (autoridade parental), que cabe, de forma igualitária, a ambos os pais, haja vista a disposição contida no art.5º, I, da Constituição Federal[2], e no art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[3], o que se coaduna com o teor do artigo 1.634, do Código Civil[4], que regulamenta o exercício dessa autoridade parental, apresentando um rol numerus apertus de direito e deveres.
Reforçando esse entendimento, o Des. Lourival Serejo, atual Presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão, afirma que “não há dúvida de que a igualdade jurídica dos cônjuges inscreve-se, hoje, entre os direitos fundamentais da pessoa humana” [5].
Importa realçar que a guarda dos filhos e o convívio no seio da família são elementos integrantes do poder familiar, e se este, gize-se, implica o exercício desse direito em igualdade de condições, em diferentes nuances, com o objetivo maior de proteger os interesses dos filhos menores, não há como se admitir que um dos pais possa pretender mais direito de tê-los em sua companhia e guarda do que o outro, obviamente em se tratando dos casos em que ambos querem e estão aptos a exercer o respectivo munus.
Nesse particular, “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade”, o direito à convivência familiar e comunitária é um dos deveres da família, da sociedade e do Estado, insculpidos no art. 227 da Constituição Federal, independentemente dos pais manterem ou não o relacionamento conjugal, posto que “a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”, como preconiza o art. 1.632 da Lei Substantiva Civil.
É exatamente o que ensina a Desª Maria Berenice Dias[6], quando afirma que “todas as prerrogativas do poder familiar persistem mesmo quando do divórcio, o que não modifica os direitos e deveres em relação aos filhos (CC. 1.579)”
Contudo, as ações têm “pipocado” nos nossos tribunais, devido à negativa de um dos pais separados, em sua grande parte, a mãe, em permitir que o pai leve o filho para passar um mero fim de semana em sua casa, por entender que somente com ela o menor estará protegido.
Nesse contexto, muitas liminares estão sendo concedidas, em sua grande parte, em favor da genitora, decisões essas em que os magistrados estão modificando o modo pactuado e praticado de convívio, e até mesmo aplicando a guarda unilateral, enquanto durar a pandemia, diante do entendimento de risco iminente de contágio. Sabe-se que já há projetos de lei que objetivam regulamentar tal situação em períodos de pandemia, como este que o mundo enfrenta, decorrente do coronavírus. Oxalá sejam votados a tempo!
Na opinião da psicanalista Gisele Groeninga, alterar o regime de guarda pode configurar uma interferência inapropriada do Estado no âmbito familiar, e ressalta, ainda, que “o que se faz necessário é um alerta – valor educativo da lei –, mas não a mudança de regime e sim a forma de convivência.”[7]
Não obstante a certeza de que as reportadas decisões visaram ao respeito do princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, deve-se levar em consideração o fato de que, se a mãe, por amor ao filho, pode adotar os cuidados necessários para evitar o contágio, o pai, imbuído do mesmo propósito e com o mesmo amor, também pode fazê-lo. Entender de forma diferente é ter uma visão retrógrada e não mais condizente com a atualidade, de que somente a mãe sabe cuidar adequadamente da prole.
Com efeito, cada caso deve ser analisado, considerando suas peculiaridades. Todavia, o confinamento social compulsório não implica dizer que filhos devam ser separados dos pais! Absolutamente! Ambos devem exercer a solidariedade e empatia, um com o outro e com a prole comum, de modo a permitir soluções para que o convívio não se interrompa, reconhecendo-se a alteridade do casal parental, como primeiro passo para uma convivência mais equilibrada, justa e respeitosa.
Contudo, sabe-se que, em se tratando de guarda unilateral, os menores geralmente passam mais tempo com o guardião. Impõe-se lembrar, neste passo, que as férias escolares dos filhos costumam ser divididas de forma equânime entre os pais.
Com a pandemia que ora se enfrenta – já que o retiro domiciliar é o recomendado -, pode ser uma solução justa para dirimir as controvérsias, a divisão do período da quarentena, tal como é repartido o recesso escolar, como bem sugerido por alguns doutrinadores, entre eles, o ibedermano João Aguirre[8]. Registre-se, por oportuno, que não se deve confundir tal medida, que visa minimizar o excesso de saídas dos filhos e, por consequência, a exposição excessiva ao vírus, neste momento de isolamento, com a guarda alternada, em que a responsabilidade jurídica e material é exercida exclusivamente por um dos genitores, no período preestabelecido por estes.
Nessa modalidade de guarda, na impossibilidade de consenso do casal parental, os menores geralmente são submetidos às preferências e ao poder do “guardião da vez”, tendo, assim, que se moldarem a este, e a agirem de acordo com suas regras.
É claro que existem situações em que, realmente, deve haver o distanciamento como proteção, por exemplo, quando um dos pais exerce atividades que o expõe a patente risco, como é o caso de médicos, enfermeiros e demais profissionais e dos funcionários de hospitais e postos de saúde que estão diretamente ligados ao enfrentamento da pandemia.
Desta forma, considerando-se a conclusão da Organização Mundial da Saúde e das mais diversas autoridades no assunto, de que o modo de infecção pelo coronavírus se dá pelo contato físico – quase sempre inevitável no ambiente familiar –, é medida lógica, salutar e fundamental evitar, ou mesmo suspender, o convívio presencial das pessoas que trabalham na linha de frente do combate à pandemia, mesmo que sejam com seus filhos, como providência necessária ao freio dos efeitos nefastos do indigitado vírus, mas mantendo-se, acaso possível, o contato virtual, por meio das redes sociais, e via telefone, minimizando, assim, o sofrimento provocado pelo afastamento.
Tais ações, que busquem harmonizar, na linha justa, os direitos/deveres do casal parental, no que respeita ao pleno exercício do poder familiar, deveriam ser sugeridas e pactuadas entre os pais, extrajudicialmente, por um mero acordo ou por mediação familiar, avaliando-se os prós e os contras e utilizando-se de bom senso, o que nem sempre é possível. Não havendo consenso nesse sentido, as decisões cabem ao Judiciário nas suas graduais instâncias, que podem trazer abalos psicológicos inimagináveis, já que, devido à urgência, são concedidas liminares, sem o exercício do contraditório e da ampla defesa, mesmo que os julgadores atuem imbuídos do melhor propósito de proteger os menores.
Diante dessa nova experiencia vivenciada globalmente, é o momento de os pais mudarem seus comportamentos, em prol do bem estar dos filhos, e de reanalisarem suas prioridades, adotando uma postura mais colaborativa e solidária, de conscientização e ressignificação de valores, sobretudo os familiares. Afinal, o que mais importa no exercício do autoridade parental, qualquer que seja a modalidade de guarda, é a prática do amor e do respeito que se impõe, primando-se, assim, pela efetiva aplicação dos princípios constitucionais da convivência e solidariedade familiar, da afetividade, e, sobretudo, do melhor interesse da criança e do adolescente, verdadeiros destinatários das novas regras, proporcionando-lhes, por consequência, um desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.
[1] Nova forma de família jurídica, em que, em razão dos filhos comuns, após a separação, divórcio ou dissolução de união estável, é mantido o elo entre os pais.
[2] CF – Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
[3] ECA – Lei nº 8.069/1990 – Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.
[4] CC – Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III (…)
[5] SEREJO, Lourival. Direito Constitucional da Família. 3. ed. Belo Horizonte. DelRey, 2013. P. 71.
[6] (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9.ed.rev.atual.ampl. São Paulo: RT, 2013.p. 2013, p. 438/439)
[7] IBDFAM. Alienação Parental ganha novos contornos em meio `à pandemia do coronavírus Disponível em: http://www.ibdfam.org.br. Acesso em: 25 de abril. 2020
[8]AGUIRRE, João Ricardo. O ‘homem cordial’ e a tutela da família em tempos de pandemia. O Estadão.2020. Disponível em: http://politica.estadao.com.br. Acesso em: 27 de abril. 2020